O primeiro raio de sol ainda não tinha saído e o silêncio da Rua Riachuelo
era rompido pelo abrir das portas de ferro da panificadora que levava o nome da rua.
Na esquina, os caminhões da Batavo e da Cancela estacionavam para descarregar engradados de leite, com garrafas ainda molhadas do sereno e do frio que fazia às cinco e meia da manhã. A Riachuelo em silêncio, começava a dar seus primeiros sinais de vida. Enquanto meu pai contava os pães dentro de sacos de trigo preparados para a entrega em grande quantidade, eu ficava no caixa e no balcão do leite,atendendo os primeiros que clientes do dia e arrumando as garrafas na geladeira do balcão.
O frio já menos agressivo, convidada a uma caneca de café para aquecer o corpo.
Pontualmente as seis da manhã, Dona Marta abria a mercearia da Riachuelo coma São Francisco, dando início a uma cantoria inesquecível de óperas conhecidas.
A voz da Riachuelo ajudava muita gente a despertar com a certeza de que o
mundo poderia ser bem melhor do que era.
Na bicicleta, os sacos de pães estavam prontos e arrumados para a entrega e lá ia eu, pedalando pela rua, parando de ponto em ponto para fazer a entrega costumeira de todas as manhãs. Nas ruas, ninguém e nada que atrapalhasse o pedalar do “padeirinho”, como me chamavam os clientes. Passava pela Rua XV, Presidente Faria, Barão do Serro Azul,Trajano Reis, 13 de Maio e voltava. Nem sempre o mesmo trajeto, mas sempre as mesmas pessoas já as 10 para as seis da manhã, dando início aos seus afazeres,
em lanchonetes, bares, hospitais, restaurantes e clientes habituais
do “pão do Gabriel”, meu pai.
Na volta, dava tempo de tomar a caneca de café, trocar de roupa e ir para o
colégio, esperando o ônibus na Presidente Faria com a São Francisco, sempre
em companhia de meus amigos Walter e Alexandre, um alemão e o outro
americano, o que foi motivo de muitas discórdias entre ambos.
E a Riachuelo deixou marcas na infância e na adolescência, pois foi lá que
conheci muita coisa sobre comércio, gente, pessoas, tanto de bem quanto
não tão boas assim.
Os vizinhos de comércio eram todos amigos, desde judeus até árabes,
pois a panificadora ficava estrategicamente localizada quase no meio da quadra, o que reunia todos para lagartear pela manhã, quando eles diziam que o sol era do Gabriel.
Ali reuniram-se ex-frequentadores de campos de concentração, árabes
recém-chegados de suas terras, alemães vindos de vários cantos, poucos
italianos e mais um grego, da família Frantzezos, que também tinha uma
panificadora perto da Praça Generoso Marques.
Em função desta mistura, aos sábados era muito legal, pois o cheiro da rua
era uma feira gastronômica, com especialidades de todos os tipos feitas
por senhoras aplicadas nas cozinhas improvisadas de lojas e de estabelecimentos comerciais.
Aí a troca era comum. Minha mãe mandava um pedaço de cabrito assado no forno elétrico da panificadora, na parte de cima para não pegar cheiro e nem gosto.
A Senhora da esquina mandava esfihas quentinhas e tabule feitos com as mãos do Líbano, ainda com terras embaixo das unhas, mas de um paladar fantástico.
E assim, nas tardes de sábado, o “Seu Osório”, da barbearia, enfileirava os garotos da região para o corte de cabelo cadete, deixando apenas um topete em cada um e todos com a mesma cara.
Cabelo comprido naqueles idos de 1969, nem pensar.
No caixa da panificadora, conhecia todos os clientes, alguns até pelo nome,
devido à convivência diária e sadia.
Professora Sarita, que mais tarde me deu aulas de piano e me levou para uma
audição sem eu saber o que era uma audição, onde acabei me apresentando
para uma centena de pessoas sem ensaiar nada. Ela ficava maravilhada.
E eu também, mas ainda não sabia que iria gostar tanto de piano.
Meu pai sempre ia para casa depois do almoço, descansar até 16 horas, quando
retornava para a panificadora. Minha mãe ficava no comando e eu ficava no caixa, religiosamente da uma da tarde até as quatro, quando dava início às lições do rigoroso Colégio Medianeira.
No balcão, fazendo lição, a clientela me ajudava, elogiava, opinava, me auxiliavam a fazer contas de matemática, quando aquilo tudo era novidade para mim.
Minha mãe, falando em grego, dizia para eu não incomodar os clientes e minha tia Dionéa, quando presente, me corrigia a caligráfica, que acabou ficando bonita por influência dela.
Saudades da Rua Riachuelo. A rua daquele tempo e não a de hoje.
A loja de móveis do Chameck tinha de tudo, e ele, forte e rígido, todas as manhãs abria seu comércio e lá ia o caminhão entregar móveis de todos os tipos.
A Cãs Recife, de roupas, de um judeu muito cara fechada, mas muito boa gente. Ele, a mulher e os filhos, desde as oito da manhã, inclusive aos sábados,
já atendiam os clientes.
A Relojoaria Brasil, com seus dois proprietários, ao lado do armazém da Dona Marta.
A Alfaiataria Riachuelo, atendia somente militares e o dono era muito simpático.
Às vezes, Paulo Goulart e Nicete Bruno vinham comprar pães ainda cedo para depois irem para ensaios de teatro.
Na esquina com a 13 de Maio, uma pensão abrigava centenas de estudantes e
sua proprietária era cliente assídua da padaria. Sempre sorrindo, se arrastando
em seus cem quilos, mas simpática como sempre.
A loja da Souza Cruz já atendia centenas de clientes com pacotes e mais
pacotes de cigarros circulando nas calçadas.
A banca do Seu Gentil, onde eu comprava sempre a TV Programas.
A dona do Casario da 13 de Maio, onde as “meninas” trabalhavam.
Gente de todos os tipos e de todos os jeitos, mas pessoas que se conheciam
e se respeitavam.
A Riachuelo guardou segredos de uma época e de um tempo que passou.
Como tudo o que passa, deixa saudades e se perde com a evolução que o
mundo sofre e apresenta.
Pessoas daquele tempo não encontro mais. Muitos morreram, como os padeiros
que trabalhavam na padaria. Outros sumiram. A professora Sarita, nunca mais
tive notícias, mas não creio que esteja viva.
Vizinhas de minha mãe também não vi mais.
Hoje passo pela Riachuelo, ainda sinto o cheiro do pão pela madrugada e dos
assados de natal feitos sob encomenda, vejo nas portas o comércio de antigamente,
ouço as vozes dos amigos daquele tempo, vejo a padaria funcionando, sinto a
saudade sadia de um tempo que foi muito útil para o aprendizado deste que escreve e, principalmente, sinto saudade grande de meus pais, que passaram a vida trabalhando atrás de um balcão, mas souberam viver a vida conforme seus gostos.
Um tempo que foi, sem dúvida, mas que hoje dificilmente será repetido por alguém, naquelas condições.
Assaltos, violência, provocações, perigo, nada disto existia.
Entregar pão de bicicleta às seis da manhã era salutar e animador.
Todo mundo se conhecia e até se protegia.
Um alemão da Presidente Faria sempre ficava olhando na porta da lanchonete
até a hora em que eu virava na XV para voltar para a padaria.
Bons tempos.
O restaurante Embaixador, tradicional ponto da Riachuelo, com o pai do
JJ Werbitzki sempre atendendo os clientes, ainda mais na feijoada dos sábados.
A lanchonete do TiMané, um mineiro fora de série que fazia um baurú como ninguém.
E a padaria do meu pai, tradicional e completa, onde vendia-se somente pão, leite, café, cuques, broas, leite, frios fatiados na hora e só.
Não havia cigarros e nem o que hoje encontramos em panificadoras.
Pão era o sustentáculo dos negócios. E com ele, uma vida tranqüila e feliz foi
permitida. Nada de ostentação, mas sim, de muita alegria e emoção.
Saudades da Riachuelo.
Uma parte da vida que fica gravada como uma cicatriz do bem.
Bons tempos, sem dúvida.
durante o tempo que morei em curitiba
ResponderExcluirpassava por essa rua desconfiando
que tipo de passado ela teria.