Quando eu era criança, me diziam que tinha um bicho no fim do corredor escuro. E eu achava que tinha e não ia até o final dele.
Quando eu era criança, a onda do mar levava a gente embora e papai e mamãe chorariam o resto da vida. e o mar era assustador e lindo, ao mesmo tempo.
Quando eu era criança, os mais velhos eram chamados de senhor e senhora, obrigatoriamente. E me parece que eles eram mais velhos do que somos hoje, claro.
Quando eu era criança, o dever de casa era uma obrigação para se tornar alguém na vida e as missas de domingo eram obrigatórias para se fazer o resumo e entregar na segunda-feira, na primeira aula, de religião.
Quando eu era criança, antes de se jogar um pedaço de pão para o lixo, era necessário dar um beijo. E ao encontrar uma freira, éramos obrigados a dizer "louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo".
Quando eu era criança, a Slopper ficava na esquina da Muricy com a XV, em cima da Tecelagem Imperial e a Joalheria Kopp ficava ao lado da Confeitaria Cometa, na Rua XV de Novembro.
A loja Madison era chamada "Casa da Borracha", o Hotel Belmar, de Guaratuba, era onde hoje é a Prefeitura, a água se buscava na bica assim que se chegava na praia, o Bar do Nelson ficava na praia central e era uma festa.
Quando eu era criança, dormir cedo era lei, além de saudável. E refeições fazia-se com o olhar atento e sério da mãe, xerifa do amor direto.
Quando eu era criança, odiava as palmilhas Dr Scholl, usadas com as botas para tratar do pé chato, pesadas e horríveis, mas era para o crescimento mais ordenado. Dr. Ito era o pediatra e Dr. Hugo de Camargo era o chefe do Hospital São Lucas. E o uniforme do Medianeira era uma camisa azul marinho com a calça da Curitex, jeans normal para a época, mas não igual à calça Lee, vendida na boutique do Lucilo, do Edifício Moreira Garcez, onde também era o Inter.
Quando eu era criança, aos domingos colocávamos a melhor roupa e íamos na casa de parentes para almoçar ou passar a tarde, para brincar de polícia e ladrão, fazer bagunça organizada e provocar leves sustos para nossos pais. Isto quando não íamos no Cine Vitória, assistir a sedssão da tarde de domingo.
Quando eu era criança dei a primeira audição de piano em um chá para senhoras em uma casa perto do Palácio Iguaçu, mas não lembro mais onde era. Minha professora chamava-se Sarita e era um encanto de pessoa.E tinha aulas de piano com a Professora Lídia, na Rua Barão do Serro Azul e depois na escola de Belas Artes.
Quando eu era criança, nota baixa era castigo e nota alta era prêmio. Assim ganhei um Autorama, mas estudei feito um louco para não pegar nenhuma final. Bem diferente de quando era adolescente.
Quando eu era criança, Guaratuba era um local de veraneio, ainda com ruas de pó e asfalto somente na principal. Faltava luz à noite e ligações telefônicas eram solicitadas quatro horas antes. Fosse para Curitiba ou para onde fosse. Pescar era uma atividade saudável, sem cervejas ou companhias femininas.
Quando eu era criança, parece que a vida seguia com mais lentidão, um ano demorava mais que um ano para passar, as férias de julho eram compridas, o natal não chegava nunca e fevereiro era o mês do carnaval.
Quando eu era criança, soldados da P.E. andando nas ruas "eram para nos dar mais segurança" e eu nem sonhava que eram servidores da revolução da ditadura. E estudantes de Filosofia, Direito e outros cursos, eram revolucionários, porque não concordavam com os militares e começava a dissidência. E fiquei na fila da Biblioteca Pública quase três horas "para dar ouro para o Brasil".
Quando eu era criança, políticos eram respeitados e aguardados com cerimônias em locais públicos ou residências de terceiros. Era uma atividade séria, parlamentar e em benefício do povo, ao menos naqueles tempos.
Quando eu era criança, o caderno do fiado existia no comércio e era honrado mensalmente, como uma lei não escrita, mas obedecida. E as atividades comerciais não apresentavam a concorrência que hoje vemos por aí.
Quando eu era criança, a vida era diferente, o mundo era diferente, tudo era normal e gostoso de se ir descobrindo.
Hoje, abro a janela e encaro meus 54 anos com serenidade, utilizando momentos de ontem como base para uma vida mais correta e com atitudes diárias que moldem o caráter, o meu e dos que vivem comigo.
Hoje, sei que naquela época, a ingenuidade tomava conta de nossas vidas e nem de longe a gente imaginava que existia amor, que era bom de ser curtido, de ser vivido, de ser sentido.
Quando eu era criança eu era feliz, assim como hoje, mas a felicidade era nua e crua, sincera e natural. Hoje é natural, claro, mas deve ser medida a passos lentos, para que terceiros não te atrapalhem e você não atrapalhe ninguém.
Boa vivência. Boa experiência.
Completamente diferente da criança de hoje que existe dentro de mim, mas que continua sapeca e alegre, feliz e contente, criativa e curiosa.
Mesmo adulto, meu lado criança me diz que existem horas que somente sendo infantil, mesmo.
E com isto, segue-se vivendo.
E aprendendo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário